A Grande Leitura #2
A tragédia em Petrópolis: corte de verbas, não aplicação de recursos, modus operandi da Defesa Civil, foro e laudêmio e uma bobeirinha
O planejamento original dessa edição do boletim era falar sobre A Semana de Arte Moderna de 1922, seguindo dica da minha mãe. Mas não tem como não falar de Petrópolis. O noticiário no Brasil virou uma sequencia de tragédias de proporções diferentes e não é por invenção ou forçação da mídia. Mas porque muitas merdas estão se sucedendo em uma cadência terrível.
Um dia é o linchamento (“sem querer matar”) do congolês Moïse, enquanto pessoas lanchavam num quiosque na Barra da Tijuca. No outro é o comerciário Durval sendo assassinado na porta de casa em São Gonçalo por um vizinho que acha que vive num faroeste. Pouco depois em Niterói um PM mata o ambulante Hiago, pois tomou as dores na discussão de uma pessoa que acusava o vendedor de querer roubá-lo. Daí vem essa megachuva que acabou com bairros em Petrópolis. Meu receio é vir algo pior. Ou voltarmos ao nível de tragédias de escala menor (no sentido de número de pessoas envolvidas) como as de Moïse, Durval e Hiago. Isso sem contar com as tragédias das chuvas em Franco da Rocha, interior de São Paulo, e no Sul da Bahia.
E ainda há uma ameaça de guerra no horizonte (que já pode ter começado).
Então ao invés de publicar mais um Chico lê, vê e recomenda, publico meu outro formato de boletim/newsletter: A Grande Leitura. Se prepara para o pequeno calhamaço de textos.
Corte de verbas. Voltando a Petrópolis, não há UMA “tragédia natural” no Brasil que não tivesse sido acompanhada por corte de verbas ou a não utilização de algum dinheiro disponível.
Essa matéria da BBC aponta que o “Centro nacional que monitora desastres naturais teve menor orçamento da história em 2021”. Pra que investir em ciência, certo? Governantes atuais, e seus apoaiadores no Congresso dizem que cientistas são só alarmistas. Ó:
Em dezembro de 2015, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) entregava ao município de Petrópolis (RJ) uma moderna Estação Total Robotizada (ETR), um equipamento capaz de detectar a movimentação de terra e, assim, ajudar a detectar possíveis deslizamentos nos morros.
Mas, neste fevereiro de 2022, quando fortes chuvas levaram à morte de mais de cem pessoas no município, o equipamento não estava mais em Petrópolis, e sim em Cachoeira Paulista (SP), onde está uma unidade do Cemaden. Em 2017, as nove ETRs que a instituição havia espalhado para municípios piloto no país, incluindo Petrópolis, precisaram ser retiradas para manutenção e nunca mais voltaram, segundo conta o diretor do Cemaden, o físico Osvaldo Moraes.
"Essas estações requerem a calibração em laboratório, mas não tínhamos orçamento para isso. Preferimos retirá-las do campo do que deixá-las lá, depreciando-se. Não tínhamos recurso para fazer esta manutenção, e continuamos sem recurso", relata Moraes.
O Cemaden é vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e, segundo dados enviados pelo próprio centro à reportagem, este teve em 2021 o menor orçamento desde sua criação, em 2011. No ano passado, o Cemaden recebeu R$ 17,9 milhões de verbas federais; em 2020, havia recebido R$ 20,9 milhões; e em 2012, R$ 90,7 milhões (o primeiro ano de que se há registro). Estes valores são nominais, ou seja, não incluem as variações inflacionárias.
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, gastou apenas 47% do previsto para prevenção e resposta a desastres:
Em coletiva no início da noite desta quarta-feira (16), o governador Cláudio Castro admitiu que "é necessário que se faça [um trabalho] preventivo", mas que o PAC vem trabalhando para que novas tragédias não aconteçam.
Mas um levantamento do jornal "Folha de S.Paulo" a partir de informações do Portal da Transparência mostrou que o governador gastou apenas 47% do previsto para prevenção e resposta a desastres. Foram reservados R$ 192,8 milhões contra um total de R$ 407,8 milhões do orçamento inicial.
Essa matéria do G1 faz uma lembrança do que é o gerenciamento de tragédias naturais no Rio de Janeiro “Chuva na Serra do RJ: 11 anos e 5 governadores após tragédia com mais de 900 mortos, nova catástrofe expõe prevenção falha”:
Sérgio Cabral, Pezão, Francisco Dornelles, Wilson Witzel e Claudio Castro. Em 11 anos, o Rio de Janeiro teve cinco governadores e nenhum deles conseguiu desenvolver e colocar em prática um plano de prevenção eficiente para evitar que as chuvas que frequentemente caem na Região Serrana se tornassem grandes tragédias nacionais.
Petrópolis está vivenciando uma situação extrema que o Brasil vive, em menor proporção de tempos em tempos: tragédias em lugares com moradias em locais de risco. E tragédias potencializadas pelo não uso das verbas reservadas para evitar esse tipo de acontecimento. Alguém se lembra que em 2020, Crivella foi atingido por bola de lama após culpar moradores pelas mortes em enchentes que atingiram a cidade do Rio de Janeiro.
E há casos como o da morte em 2019 de um taxista, uma senhora e sua neta na Ladeira do Leme, em Copacana, Zona Sul da cidade. Foi um caso que chamou minha atenção na época que aconteceu: uma senhora e a neta voltavam do shopping Rio Sul durante uma forte chuva, quando pedras e terra deslizaram de uma encosta, atingindo em cheio o táxi onde estavam. E, pelo google maps, a Ladeira do Leme é um local arborizado, teoricamente com menos risco de sofrer deslizamento.
Defesa Civil. A Folha de S. Paulo publicou uma das matérias mais essenciais sobre a tragédia em Petrópolis: como é a organização da resposta da Defesa Civil para potenciais tragédias? Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que o nível de chuva que caiu sobre a cidade não era previsto. No grau que aconteceu, era uma tragédia impossível de ser prevista. Mas se já estava chovendo há um tempo na cidade e o solo já estava encharcado previamente antes da megachuva se abater na cidade, já havia uma situação de grande risco em determinados locais se essa mesma chuva apertasse ainda mais então a população deveria ter sido informada sobre isso.
A matéria de Matheus Moreira, Phillippe Watanabe e Ana Luiza Albuquerque detalham um pouco essa organização de resposta:
Às 12h26, a Defesa Civil do Rio de Janeiro emitiu um informativo em que indicava chuva forte para a região serrana. Às 15h, o Corpo de Bombeiros recebia o primeiro chamado de ocorrência relacionado à chuva.
Às 17h05 o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) emitia um alerta recomendando "verificação in loco, nas áreas de risco, acionamento de sistema de sirenes, possibilidade de desocupação das áreas de risco, deslocamento das equipes de resposta para as proximidades das áreas de risco". Ao mesmo tempo, a Defesa Civil de Petrópolis atendia ocorrências de deslizamentos de terra.
(…)
Apesar de Petrópolis ter um plano de contingência detalhado pronto, as informações corroboram o que especialistas e autoridades têm dito sobre o caráter imprevisível da tragédia.
Marcelo Seluchi, meteorologista e coordenador-geral de operações e modelagem do Cemaden, afirma que a velocidade de alteração dos alertas foi tamanha que a situação "entrou na esfera do imponderável".
O diretor do Cenad (Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres), Armin Braun, disse à Folha que um bom plano de contingência requer ações de alerta à população (SMS, sirenes ou mobilização de agentes para avisar pessoalmente as pessoas em áreas de risco), medidas definidas e explicadas sobre o que a população que vive em áreas de risco deve fazer e quais atividades cada órgão, entidade ou instituição deve assumir.
(…)
Braun afirma ser essencial que as pessoas saibam exatamente o que fazer, para onde ir e como chegar a esses locais em caso de desastres. "Alguns planos são muito locais, específicos para determinadas comunidades. Como esse plano [de Petrópolis] é bem local, ele precisa ter sim pontos de apoio, pontos de encontro e rotas de fuga [até os pontos de apoio]."
O Plano de Contingência de Petrópolis para Chuvas Intensas do verão de 2021 e 2022 lista pontos de apoio fixos e rotas de fuga. Também detalha onde estão as sirenes e como chegar até elas.
Cada local onde há uma sirene conta com descrições detalhadas com fotos e mapas a partir das ruas do seu entorno. (Acesse aqui)
Há em Petrópolis 96 setores de risco em 19 regiões, cobertas por 18 sirenes espalhadas por 4 bairros.
(…)
O plano de contingência é acionado no momento em que é constatado um número de ocorrências superior ao que o governo e as autoridades podem dar conta simultaneamente.
Quando o plano é acionado após os alertas de risco enviados pelo Cemaden e pelo Cenad, o acompanhamento das chuvas e movimentações de massa é intensificado.
E a matéria então detalha o que se fazer quando a situação chega ao nível de Estado de Atenção (população se prepara para o pior e pega documentos, remédios controlados, mudas de roupa) e depois ao Estado de Alerta (as pessoas se retiram e vão para os locais de apoio). O primeiro Estado é sinalizado com um toque de sirene. Um segundo toque de sirene sinaliza a entrada na segunda situação.
Mas então o texto entra num ponto que considero essencial:
Noronha afirma que os alertas emitidos pelo Cemaden ficam restritos a atores como Defesa Civil. "Ela deveria ser replicada para a população. Como é possível ter uma informação [de risco] e não repassar?".
Para ele, a população tem dificuldade de confiar nos agentes públicos porque a sua relação com eles é de "polícia fiscalizatória, agente controlador das ocupações". "A política não tem o que é fundamental: ser o agente público qualificador da segurança dos cidadãos. Os atores da gestão de risco, quando aparecem, é para remover as pessoas. Não é amigável."
A população deveria poder escolher receber os alertas do Cemanden. Esses alertas não deveriam ficar restritos à Defesa Civil, porque se houver uma falha ou hesitação, tragédias podem acontecer. Em posse das informações do Cemaden, as pessoas poderia escolher esperar a resposta da Defesa Civil ou então se adiantar e se retirarem do local de risco. É mais ou menos o que acontece no Japão:
No Brasil, há, em teoria, uma atuação mais forte das Defesas Civis em horas de crise, buscando ativamente a população em risco. No Japão, a população ganha mais protagonismo e autonomia nesses momentos, sendo a responsável pela ida a locais seguros, afirma o especialista do Cemaden.
Ele conta que, muitas vezes, quando a Defesa Civil tenta retirar moradores de locais de risco, eles se recusam a sair, entre outras razões por medo de que suas casas sejam saqueadas.
Tragédias pessoais. Eu li algumas matérias que relatavam a busca das pessoas por familiares e amigos. Fiquei bastante mexido e passei a evitar outros textos, como o caso dos passageiros do ônibus. Não dá pra mensurar o que aconteceu em Petrópolis. Muita gente perdeu tudo.
Há casos que dão algum alento, como o da neta que indicou o local que a avó estava soterrada e conseguiu salvar ela. Ou pessoas que salvaram animais de estimação. Teve casos de professores que conseguiram salvar alunos, quando a água começou a invadir a escola onde estavam.
Há muito, muito, muito a se falar sobre o assunto. O texto ‘O bebê morto em Petrópolis’ da Ruth de Aquino é certeiro demais sobre tragédias brasileiras que se repetem de tempos em tempos.
Foro e laudêmio. A tragédia em Petrópolis ressucitou uma discussão sobre a cobrança do Foro e Laudêmio na cidade e em certas partes do País (como no litoral). Há um bom tempo fiz uma matéria para o extinto Jornal do Commercio e lembro de que fiquei surpreso PRA CARALHO ao descobrir sobre esses dois impostos/taxas que, dependendo do local de cobrança, favorece os herdeiros da família imperial brasileira ou as Forças Armadas do País. São as cobranças MAIS ANTIGAS AINDA VIGENTES DO BRASIL. Monarquistas e as forças armadas do Brasil são alguns dos mais entusiatas apoiadores do atual governo, que prega Estado Mínimo. Deveriam apoiar o fim do Foro e Laudêmio, certo? Ou o Estado Mínimo é só pra cima dos outros?
Uma bobeirinha pra aliviar. Que arquiteto urbanista nenhum(a) leia meu boletim ou vai pegar no meu pé com essa viajada minha. A revista Piauí tem uma seção semanal chamada Igualdades, onde faz levantamento estatístico sobre algum assunto relevante do País. No final de janeiro, falaram sobre as pessoas em situação de rua em São Paulo. Hoje são cerca de 32 mil pessoas vivendo em situação de rua na capital paulista, sendo 71% desse total pretos ou pardos. Essa população ocuparia o equivalente a 9 vezes o edifício Copan, maior prédio residencial da América Latina.
Quando ouvi no podcast Foro de Teresina, da revista Piauí, que 32 mil pessoas ocupariam cerca de 9,4 edifícios Copan, não consegui deixar de pensar: então porque não construir 9,4 Copans? Cada Copan ocupa um quarteirão, então 9,4 quarteirões dedicados à habitação social resolveria o problema. Obviamente é uma solução rasa para resolver a questão das pessoas em situação de rua, mas, sinceramente, achei que seria necessário mais Copans para resolver essa situação.
No caso de casas em situação de risco na região metropolitana de São Paulo, o buraco é muito mais embaixo: são cerca de 750 mil. Fazendo as contas aqui, seriam necessários 222,4 Copans (ou quarteirões) para solucionar de forma rasa essa questão. Tenho até a sugestão desse novo programa revolucionário de habitação: Meu Copan, Minha Vida.
Com essa boberinha, encerro essa edição do boletim.