Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo Agora é um bom filme. Redondo, dinâmico e com uma história que segue aquela “busca por final feliz” bem típica do Oscar. Por um lado, chega a ser quase careta nesse sentido de ser ou procurar ser “digno do Oscar”. Entendo quem adorou pela mensagem/tema e quem não curtiu pela linguagem/formato da história. E se há uma diferença de uma peça “oscarizável” tradicional, essa diferença é justamente a linguagem/formato adotado. E o filme ganhou 7 dos 11 Oscars que estava concorrendo.
Caso não conheça, segue o trailer:
A história
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo Agora conta um dia particularmente difícil de uma família de imigrantes chineses que foram para os EUA (ou America) para perseguir o American Dream. O casal Waymond e Evelyn Wang toca uma lavanderia mal das pernas, que enfrenta problemas de documentação com o governo. Joy, a filha, abandonou os estudos e parece sem rumo - e, lésbica, não tem a orientação sexual aceita pela mãe. O pai de Evelyn, Gong Gong, que mora (ou está hospedado) com eles, é controlador e conservador ao extremo.
O dia retratado mostra Evelyn tendo que lidar com os preparativos da festa do Ano Novo chinês, que será naquela mesma noite, ao mesmo tempo que lida com a papelada da burocracia governamental e a má vontade da burocrata Deirdre, interpretada por Jamie Lee Curtis. Joy quer apresentar a namorada ao avô. E Waymond quer o divórcio, mas não sabe como dizer. Evelyn também não está feliz com o rumo da sua vida.
O motor do filme são os atores. Há química entre eles e nos simpatizamos por todo mundo. E esse motor sustenta e dá liga toda a maluquice de ficção científica que vai surgindo no desenrolar da história.
Além do mais, para a galera da minha geração (por volta dos 40 anos), facilita a decisão de terem escolhidos nomes caros pra quem curte cinema, como Michelle Yeoh (que estourou no mundo ocidental com o Tigre e o Dragão), Ke Huy Quan (famoso como criança-prodígio em Goonies e Indiana Jones) e James Hong (o vilão em Os Aventureiros do Bairro Proibido). Pro povo mais jovem, o fato do filme falar de diversidade importa bastante (daí uma tropa de choque no Twitter atacando quem fala mal do filme). A atriz da Joy (Stephanie Hsu) segura bem demais as pontas no meio desses medalhões.
Voltando pra história.
Evelyn está enfrentando um dia crucial na sua vida. E aí entra a parte de ficção científica, que envolve agentes de realidades paralelas e a luta contra uma grande vilã - que é a filha de uma outra realidade.
Ficção Científica
O filme fala de universos múltiplos. É como se houvesse uma versão sua que tomou decisões diferentes, que levaram a resultados diferentes. Se você não sabe o que é realidade paralela ou multiverso (esse boletim é enviado não só para amigos, mas para familiares que não acompanham a cultura pop), trago um trecho de uma matéria da BBC sobre o assunto:
BBC News Brasil - Do ponto de vista da física, o que são os multiversos?
Osvaldo Pessoa Jr. - Eu diria que o multiverso é uma hipótese. Não há nenhuma evidência científica que indique diretamente a existência de universos paralelos. Temos os conceitos de multiversos da física e da filosofia.
No caso da física moderna, existe um problema teórico na área de partículas, que é o fato de que, se as constantes do universo fossem levemente modificadas — por exemplo, se a carga do elétron sofresse uma alteração mínima, de 1% ou até menos — a vida já não seria mais viável.
Claro que tudo isso é discutível, e esse universo poderia ter vida de alguma outra maneira não conhecida. Mas, a princípio, parece que as constantes do universo estão ajustadas de uma maneira muito fina.
Como você explica o fato de que essas constantes são ajustadas de tal maneira a ser possível ter vida inteligente no universo? Existem três explicações básicas. A primeira fala em Deus, que criou o universo com as constantes ajustadas para existir vida inteligente. A segunda hipótese é a de que não tem explicação mesmo. Esse é um dado bruto, as coisas são assim e não há muito o que especular sobre.
A terceira tentativa de explicar isso seria o seguinte: ora, e se houvesse um grande número de universos paralelos, e eles brotassem como os galhos de uma árvore? A partir daí, poderíamos reconhecer que na maioria deles não haveria viabilidade para a vida, porque as constantes do universo variam aleatoriamente. Ou seja, em 99% desses universos não haveria vida. Mesmo assim, em 1% deles poderia existir vida.
É claro que a gente só vai poder fazer ciência num universo com condições de ter vida. Esse ponto do argumento é conhecido como princípio antrópico. Ele é meio óbvio, mas importante para a explicação funcionar. A gente sabe que faz ciência e tem vida inteligente no nosso universo. E o princípio antrópico diz que só num universo que permite a existência de vida inteligente é que alguém como nós pode fazer ciência.
Então, a hipótese do multiverso, que é a terceira explicação para o ajuste fino das constantes, diria que existem muitos universos paralelos — e aqueles poucos que reúnem algumas condições têm vida inteligente, como é o caso do nosso.
Há paralelos com o filme Matrix e o aprendizado instantâneo de habilidades (“Eu sei kung fu”) com o diferencial de que, para a pessoa acessar o conhecimento do seu “eu de outras realidades” é necessário fazer algo ridículo. Há uma tentativa de explicar o porquê disso, mas na real não importa. É só uma ferramenta narrativa para o filme. E há momentos que lembram o humor quase anárquico do desenho South Park. E é nisso que se afasta do “padrão Oscar” e um povo tomou ranço. É bobo, é pop, não é pra todo mundo, mas eu curti.
Identitarismo?
Surpreende que parte do filme seja falado inteiramente em chinês. Americano não gosta de ler legenda. Há quem credite essa “novidade” à política de “identitarismo” de Hollywood - que chamam de forçação de barra pra integrar outras identidades e culturas (negras, asiáticas, LGBTQIA+) ao pop, que passa ir além de pessoas-brancas-com-relacionamento-papai-mamãe ou coisa do tipo.
Há quem ache “identitarismo” ruim.
Vou chamar atenção para o Ke Huy Quan. O ator de Waymond ficou anos sem atuar porque não chegavam a ele papéis além do estereótipo do asiático. Quando criança, participou de um dos filmes da série Indiana Jones.
Veja o que ele falou sobre o hiato na atuação:
“Por muito e muito tempo, Hollywood simplesmente não escrevia material, ou ao menos bom material, para atores asiáticos”, concorda Quan. “O que eu costumava receber eram roteiros em que o personagem não tinha nem um nome, e só duas falas... Muita coisa mudou, e é por isso que eu estou aqui, que eu decidi voltar à atuação”.
Dados do IMDB apontam atuações esporádicas em filmes e séries menores e um hiato entre 1997 e 2002.
Curioso que Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo Agora mostra um casal imigrante chinês um tanto estereotipado. Evelyn tem problemas com o inglês, mesmo morando há anos nos EUA. Nada me tira da cabeça que Waymond é uma corruptela de Raymond, mas pronunciada de forma errada. Evelyn é uma protagonista homofóbica e reclama do peso da filha. Não é a heroína ideal.
E a vilã é a filha homossexual gordinha e deprimida.
O filme seria um prato cheio pra ser “cancelado” por ativistas da internet que se mobilizam em massa pra atacar tudo e todos que não atendem os critérios do que entendem como representação ideal na cultura pop. Mas acontece justamente o contrário, no meu entendimento, pela força da atuação dos protagonistas. Mais do que por invencionices à la Matrix - que foram feitas com técnicas analógicas simples, além da ajuda da computação gráfica.
Tema
O filme fala sobre a vida familiar sobre pressões extremas, como isso nos afasta e o que podemos fazer para nos aproximar.
E também fala sobre como nossos tempos modernos hiperfracionados, que demandam a nossa atenção para assuntos diferentes o tempo todo nos leva à depressão. Essa demanda por foco é algumas pessoas andam chamando de Attention economy ou A Economia da Atenção - ganha dinheiro/status quem consegue se destacar no meio da bagunça que é o nosso dia a dia. E o refinamento da técnica da “chamar atenção” - técnica muito bem adotada por políticos da extrema-direita - está levando a nossa sociedade à depressão e outras doenças mentais. O filme aborda indiretamente esse tema.
(E ele mostra para realizadores de filmes de super-herói como contar uma história com poderes e com um conteúdo e uma mensagem mais relevante)
E também fala sobre a nossa sociedade e como fluidez narrativa, com constante mudança de gêneros de história num mesmo filme, é o formato ideal para contar histórias para gerações mais novas - que estão adotando a fluidez de gênero e de relacionamentos. E isso resvala na política. No YouTube, o 2o colocado na pesquisa sobre o filme é um vídeo de um cara da extrema-direita americana comentando a premiação do Oscar para o um filme “identitário”.
Então Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo Agora é mais do que uma peça de ficção ou entretenimento para algumas horas, mas também uma proposta narrativa para os tempos atuais e os que virão.
Mas não é pra todo mundo, mesmo que concorde ou simpatize com as ideias propostas.
Extra
Vi esse filme no Estação NET Rio, que corre o risco de fechar pra dar lugar a um empreendimento imobiliário. Deixo aqui o protesto de funcionários e clientes: